10.11.04

Cotidiano

Estava a ouvir “Cotidiano” de Chico Buarque versão Seu Jorge quando comecei a prestar mais atenção na letra do que de costume. Como toda poesia, cada leitura possui sua subjetividade intrínseca mesmo às vezes sendo completamente distorcida. A minha forma de ler foi pelo viés da rotina boa. Daquela rotina da qual você faz parte e com a qual se depara todos os dias, mas que de certa forma isso te deixa feliz. Talvez por evitar que qualquer problema que se origine dos desvios de acontecimentos ocorra.
Meio amedrontador, não?

É fantástico como podemos nos esconder por detrás de algo que está muito bom, muito confortável. Aquela rotina deliciosa de coisas que naturalmente sucedem umas as outras, como que em um balé perfeito de uma vida perfeita. Por que, então, no final do último ato podemos nos sentir como que aquele dia simplesmente passou e não aconteceu? Que simplesmente foi uma somatória de fatos dados, corretos, simples que não resultaram em algo produtivo ou revigorantemente positivo?

Dizem que somente damos valor a nossa felicidade quando sabemos o que é ser infeliz. Eu não preciso de algo ruim me acontecer para que eu saiba reconhecer um momento de plena felicidade, mas posso afirmar, categoricamente, que se não fosse por esses momentos mais baixos na vida, não conseguiria dar o valor aos momentos bons. Nesse cotidiano bonito em que às vezes se vive, onde tudo funciona perfeitamente, é muito difícil arrumar uma brecha para que algo ruim aconteça; somos presos a nossa rotina Poliana e, naturalmente, ninguém quer sair dela.

E eu discordo plenamente.

Acho que esse cotidiano lindo acaba por deteriorar qualquer vontade que possamos desenvolver, pois nos limitamos ao conto de fadas, a propaganda de margarina, “Oh, Happy Day”, que não acontecem. É muito mais cômodo, é muito mais fácil, mas já dizia o poeta, “Ignorance is a bliss”. Creio que o cotidiano deva, sim, ter uma rotina, mas aquela que traga aquela felicidade de chegar em casa depois do trabalho ou de um dia corrido, de acordar tarde no sábado, de saber que as coisas estão sempre mudando, mas que em algum lugar tem um porto seguro. De saber que decisões são tomadas todos os dias, e escolhas são feitas e que, por mais cansativo que seja, nenhum cotidiano foge disso.

“Todo dia eu só penso em poder parar

Meio-dia eu só penso em dizer não

Depois penso na vida pra levar

E me calo com a boca de feijão

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