26.6.05

Sobre uma tarde

Não me pergunte como eu fui ficar sem dinheiro. No caso, dinheiro vivo, cash. São detalhes entediantes para esse momento. Entenda apenas: agora, nesse exato instante, eu nao tenho uma nota da moeda local. Uma moeda sequer. Nada, niente, nein nein nein, no hay la plata.

A tecnologia evolui e cria diversas modernidades, mas se o mundo, os lugares e as pessoas não evoluirem junto, o que é novo vira obsoleto. Todo o meu dinheiro é eletrônico, mas nesse momento eu não consigo ir no supermercado. Eu não consigo tomar sorvete.

Porém, consigo ir no restaurante italiano na esquina da praca alemã.

Já é hora de jantar mas o dia ainda está claro: coisas desse continente. É terca feira, a movimentacão é tranquila demais até para essa palavra.

A garconete tem a beleza forte tipicamente italiana: um jeito que não pede licenca para ser olhado e, ao mesmo tempo, esta acima disso. Os garcons tem aquela feicão rústica e bonita que as todas as mulheres gostam de algum jeito - ainda que várias não admitam nem a si mesmas.

O restaurante é frequentado por conhecidos, clientes regulares. Um casal, pequenos grupos. Além de mim, a única pessoa comendo sozinha é uma senhora que está sentada em uma mesa em frente a minha. Ela veste um vestido branco com estampa de zebra, os ombros ligeiramente à mostra, uma fenda distinta de cada lado da saia. O cabelo é branco e arrumado em um corte chanel, mas baguncado o suficiente para ter vida. A pele, bronzeada como que mora na praia e nunca teve medo do mar. Conhecida pelos funcionários, a senhora conversa com todos, amigável e calma. Ela é a definicão ambulante de joir de vivre.

Estamos jantando na varanda, e eu peco um carpaccio, leve como essa tarde de verão. Enquanto como, no ritmo devagar de uma boa refeicão européia, pequenas gotas de chuva comecam a cair, lentas como o tempo passando. Eu olho para a jovem senhora, ela para mim, sorrimos. A chuva então vai se tornando forte o suficiente para ser sentida, mas sem trovoadas ou reclamacões do céu; uma boa chuva de verão. A senhora então fala algo comigo, comentando do teto (que vai sendo fechado aos poucos), do tempo, da chuva, não sei do quê, e eu nunca em minha vida desejei mais poder falar alemão. Tanta lingua, italiano, alemão, inglês, espanhol, meu Deus pra quê tanta...

"I´m eating in the rain...", comeco a cantarolar na minha cabeca, e o teto da varanda comeca a ser fechado. O mundo é muito colorido agora. Prédio pequenos de várias cores, fucsia, azul, amarelo, verde, rosa, branco. Um carro laranja. Um homem de uniforme vermelho numa bicicleta preta.

Assim como eu, a senhora admira a tarde descompassada e poética. Ela tem olhos de quem espera, característica da idade. Mas atitude de quem sabe que não adianta esperar muito. Ela está no terceiro copo de vinho e, inspirado, decido pedir o meu primeiro. Nada melhor para um mormaco de verao, aquele clima quente bom de final de tarde no qual ninguém derrete, mas também ninguém se agasalha.

Não existem grandes histórias, dramas ou momentos. Em uma tarde de alegria mansa, só nos resta sentir o mundo ao nosso redor.

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24.6.05

É pra ler ou pra comer?

De uns tempos para cá, quando todas as decisões tinham que ser tomadas, independentemente se eu sabia a resposta certa ou não, comecei a pensar em diversas possibilidades para qualquer pergunta com a qual eu tinha de lidar. Numa dessas perguntas tidas como fundamentais, como essenciais para o meu caminhar saudável (e, não, não está sendo saudável) deparei-me com algo que estava bem escondido em mim: cozinhar.

Como era algo novíssimo para mim, e eu mal sabia como lidar com uma nova paixão, apenas dividi esse sentimento com uma amiga. E ela é genial. E me apoiou em questões que eu mal havia pensado antes. E dentre tantas crises de começar de novo, de continuar, de me deixa ser feliz, ela foi lá e deu o primeiro passo por mim. Mas são muitas dúvidas e eu muitas vezes só piso em terreno garantido.

Mesmo nada tido acontecido, nenhuma mudança brusca na minha vida, essa questão da culinária, da cozinha, de montar pratos, de experimentar tudo, por algum motivo, permaneceu. Ao me sentir mais à vontade com essa descoberta,passei a dividi-la com mais pessoas. Grande erro, eu diria, grande erro.

Se uma pessoa mal sabe o que fazer com algo que acabou de nascer por que diabos dividi-la com mais gente ainda? Mais gente que vai lidar com isso de uma forma bem diferente da sua amiga genial.

Obviamente queremos apoio, queremos que digam para seguirmos para frente, vá lá e faça, esse tipo de coisa que precisamos quando estamos naquela corda bem bamba sem saber se vai ou se volta.

Foi então que recebi a primeira review “Claro que você gosta de cozinhar. Você é mulher e isso está no sangue. Mulheres gostam disso porque é o que elas devem fazer.” Ainda bem que não tenho todas as facas e utensílios assassinos potenciais. Depois disso deixei a nova paixão para mim. Só minha e me deixe com ela.
E comprei meu primeiro livro de culinária.

Tive o mesmo frisson dos primeiros livros de Ciências Sociais que eu comprei, que eu li, que eu reli, que eu analisei. E a paixão pelas Sociais aconteceu depois de uns três anos de curso.
E estou lendo e descobrindo tudo o que eu não sabia, o que é a parte mais deliciosa de aprender.
Evidentemente a prática está bem para trás, sem saber com o que lidar, com os materiais, com as combinações, mas ainda resistem todas as primeiras (e maravilhosas) situações de tudo o que acontece num relacionamento novo.

Ainda não sei se a paixão se concretizará em lindos pratos ou se os ingredientes irão esvaecer. Se os frutos disso forem apenas alguns prazeres na mesa, está de bom tamanho; mas se eu sucumbir à paixão, o primeiro banquete vai ser para minha amiga genial. E depois ela conta por aqui se o primeiro passo foi na medida certa.

Em tempo: a amiga genial não o é porque fez um comentário favorável e sim porque não questionou, não opinou e sim, somente apoiou qualquer coisa que eu fosse fazer.

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16.6.05

Memoria in aeterna

O espaço que temos em nosso cérebro que é destinado à memória deve ser bem grande e, contudo, creio que não usemos a maior parte dele. Considerando ainda que temos uma memória seletiva, quando fazemos aquela releitura de nossos momentos – bons e ruins – temos a tendência a considerar os supostamente relevantes. Não entrarei nem na questão de que somos o que vivemos e obviamente temos muitas memórias das quais não nos lembramos sempre mas que foram essenciais para o desenvolvimento do nosso caráter (palavra forte essa).

Sei que constantemente lembro-me de coisas que me parecem muito sem importância, que nada têm a me acrescentar e que não vejo razão por lembra-me delas. Muitas vezes relacionadas com cheiro (memória olfativa é uma das minhas mais fortes), com a situação, com sentimento...Ultimamente ando tendo lembranças fortíssimas de acordo com o passar das horas.

Qualquer uma dessas tardes em que não se está fazendo nada, bem no meio da semana (muito raro pra muita gente hoje em dia) ouço aqueles barulhos de construção, madeira sendo cortada, tijolo sendo quebrado, pessoas gritando e me lembro exatamente de quando era bem pequena e que ficava em casa ouvindo tudo o que acontecia ao meu redor. O cachorro da vizinha, a minha cachorra, a louça sendo lavada e a construção que parecia nunca terminar. As 16 horas, pra mim, são a construção.

Quando se aproxima das 18h, e sei que já está escuro, mas não completamente, mesmo estando sozinha, consigo sentir cheiro de comida. E não qualquer comida. Aquela que meu pai fazia e que ainda faz, mas não mais nesse horário. Creio que para muita gente esse horário é de janta também, mas dadas todas as mudanças que aconteceram desde os idos de 1987, jantar às 18h passou de coisa corriqueira para acontecimento impossível. Por isso que as 18h, com cheiro de feijão e alho no arroz, ainda são da infância.

Como passei a maior parte de todas as manhãs da minha vida dormindo, com exceção de quando ia para a escola (e essas memórias residem em outro compartimento do meu cérebro) não tenho aquela hora-memória bem esculpida. Mas posso garantir que não há nada mais confortante que o cheiro de café se espalhando pela casa, por todos os cômodos, me dizendo olfativamente que meu pai tinha acordado, preparado meu lanche e do meu irmão e deixado um bilhete (que ainda deixa) para minha mãe, ao seu lado, na cama.

E ultimamente me parece que todo momento que passa e que me lembro desses pedacinhos de memória perdidos, mais memórias vão sendo guardadas. Creio que somente para que eu lembre delas mais tarde, tendo toda a certeza do mundo que aquele momento besta, na realidade, era o que me deixava feliz. E talvez esses momentos agora, que não me dizem nada, serão guardados naquele compartimento que eu sou vou abrir quando precisar. Ou quando menos esperar. E dar tanto valor a ponto de escrever sobre eles.

“I remember one morning...getting up at dawn, there was such a sense of possibility. You know? That feeling?And I remember thinking to myself: So, this is the beginning of happiness. This is where it starts. And, of course, there will always be more. It never occurred to me it wasn’t the beginning, it was happiness. It was the moment...right then." in Mrs.Dalloway

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