Sobre uma tarde
Não me pergunte como eu fui ficar sem dinheiro. No caso, dinheiro vivo, cash. São detalhes entediantes para esse momento. Entenda apenas: agora, nesse exato instante, eu nao tenho uma nota da moeda local. Uma moeda sequer. Nada, niente, nein nein nein, no hay la plata.
A tecnologia evolui e cria diversas modernidades, mas se o mundo, os lugares e as pessoas não evoluirem junto, o que é novo vira obsoleto. Todo o meu dinheiro é eletrônico, mas nesse momento eu não consigo ir no supermercado. Eu não consigo tomar sorvete.
Porém, consigo ir no restaurante italiano na esquina da praca alemã.
Já é hora de jantar mas o dia ainda está claro: coisas desse continente. É terca feira, a movimentacão é tranquila demais até para essa palavra.
A garconete tem a beleza forte tipicamente italiana: um jeito que não pede licenca para ser olhado e, ao mesmo tempo, esta acima disso. Os garcons tem aquela feicão rústica e bonita que as todas as mulheres gostam de algum jeito - ainda que várias não admitam nem a si mesmas.
O restaurante é frequentado por conhecidos, clientes regulares. Um casal, pequenos grupos. Além de mim, a única pessoa comendo sozinha é uma senhora que está sentada em uma mesa em frente a minha. Ela veste um vestido branco com estampa de zebra, os ombros ligeiramente à mostra, uma fenda distinta de cada lado da saia. O cabelo é branco e arrumado em um corte chanel, mas baguncado o suficiente para ter vida. A pele, bronzeada como que mora na praia e nunca teve medo do mar. Conhecida pelos funcionários, a senhora conversa com todos, amigável e calma. Ela é a definicão ambulante de joir de vivre.
Estamos jantando na varanda, e eu peco um carpaccio, leve como essa tarde de verão. Enquanto como, no ritmo devagar de uma boa refeicão européia, pequenas gotas de chuva comecam a cair, lentas como o tempo passando. Eu olho para a jovem senhora, ela para mim, sorrimos. A chuva então vai se tornando forte o suficiente para ser sentida, mas sem trovoadas ou reclamacões do céu; uma boa chuva de verão. A senhora então fala algo comigo, comentando do teto (que vai sendo fechado aos poucos), do tempo, da chuva, não sei do quê, e eu nunca em minha vida desejei mais poder falar alemão. Tanta lingua, italiano, alemão, inglês, espanhol, meu Deus pra quê tanta...
"I´m eating in the rain...", comeco a cantarolar na minha cabeca, e o teto da varanda comeca a ser fechado. O mundo é muito colorido agora. Prédio pequenos de várias cores, fucsia, azul, amarelo, verde, rosa, branco. Um carro laranja. Um homem de uniforme vermelho numa bicicleta preta.
Assim como eu, a senhora admira a tarde descompassada e poética. Ela tem olhos de quem espera, característica da idade. Mas atitude de quem sabe que não adianta esperar muito. Ela está no terceiro copo de vinho e, inspirado, decido pedir o meu primeiro. Nada melhor para um mormaco de verao, aquele clima quente bom de final de tarde no qual ninguém derrete, mas também ninguém se agasalha.
Não existem grandes histórias, dramas ou momentos. Em uma tarde de alegria mansa, só nos resta sentir o mundo ao nosso redor.